quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Drave

















Nela, a noite. A face obscura da noite, e o medo. O olhar perdido no horizonte de gelo, na imensidão dos montes e na vegetação rasteira com as suas flores amarelas e roxas misturando-se em mantos de natureza intocada. Como ela. O vento atravessa-a com indiferença, penetra-a com indiferença, mas não se fixa, não fica mais que um instante. Nesse instante existem muitas imagens de frio, de sangue. Os rostos queridos ficaram para trás. A solidão não magoa, magoa a consciência que a separa dos animais e das plantas e das pedras cinzentas da aldeia despovoada.

Ali seria, talvez, possível viver. Ali seria, por certo, também possível morrer. A diferença repousaria somente na paisagem e na pureza do vento implacável, mais feroz e livre que nos outros lugares distantes do mundo. A diferença repousaria no silêncio e no cheiro a erva molhada, na canção lenta e desconhecida das águas correndo sem cessar. A diferença repousaria na noite, funda, funda. A noite está dentro dela, companheira fiel e descomprometida, guardiã de segredos inconfessados, brilhantes, encardidos. Conhece os momentos inacreditáveis em que o espírito atingiu patamares opostos, repletos de vergonha e de ternura. A noite do desejo, do desespero, dos abandonos e reencontros temíveis; ama da destruição desse amor maior do que a vida, maior do que a morte. Insuportável e condenado desde o início dos tempos.

Tantas as súplicas que se escapam dos lábios sem cor! Espalham-se no ar revolto e voam – quais pétalas ondulando desatinadas, loucas – rumo ao precipício. Não se vê o seu fim, apenas se adivinha com fria certeza que nenhuma mão milagrosa as terá amparado na sua queda. Chove, e a chuva consegue turvar os pensamentos e os olhos. Para além dos montes, para além das estradas de terra batida e da ausência de música (qualquer que seja), existe uma casa para onde ela não quer voltar. No seu interior, um compartimento alberga as provas físicas da existência dos rostos queridos, dos lugares onde o céu é azul, sempre.

Constatar que foi feliz fá-la ter vontade de fugir e caminhar depressa por entre as ruas de cidades díspares. Não raras vezes, cruza-se com desconhecidos que lhe lançam olhares profundíssimos, inquiridores. Respira aliviada por saber que é, provavelmente, a última vez que os vê. Dessa forma não corre o risco de os guardar e relembrar, e ninguém fará perguntas, ninguém desiludirá, os corpos permanecerão limpos das carícias que poderiam ter sido.