segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

"Dias vai continuar a haver"



















Como é que se preenche de volta o olhar de um homem que perdeu o filho?

E o amava. Porque há pais que só o são por acaso. Porque aconteceu, porque toda a gente o faz, porque depois outros tomarão conta dele, e que vale isso, afinal?

Este homem amava o filho e sentia que a escuridão se ia embora quando ele chegava, sem avisar, à casa modesta naquela aldeia perdida, muito perto da praia. Ali, não cheirava a mar, mas havia de chegar o aroma a desespero característico das horas em que mais um pescador é engolido pelas águas salgadas e intempestivas. E, simplesmente, se sabe.

Este homem, que amava o filho, era tão belo na sua virtude que nem os dentes estragados, de um amarelo torrado, lhe desfaziam a face azul transparente, como imaginamos o corpo das sereias. E elas deviam andar perto, a cantar-lhe, porque ele não ouvia ninguém - nem queria. Conseguem imaginar Joaquim, que morreu para a esperança e para a alegria, quase totalmente, num dia de Natal, e ainda é belo? E chora, chora, e faz-nos querer chorar só porque não havia direito.

“Dias vai continuar a haver”.

Tudo vai continuar a haver, só ele é que não. Nota-se, o que o habita já voou para qualquer lugar. Impossível chegar lá.

Gostaríamos de preencher-lhe o olhar, de qualquer maneira, outra vez. À força, se preciso, a pazadas de energia: por favor, por favor, aceita isto que te damos, é força para continuares a ser o mesmo, doce e encantador.

Mas como se preenche de volta o olhar de um homem que perdeu o filho? E o amava.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Para nós houve esperança















Seguimos
quebradas
na escuridão dos dias cheios de sol.
Para nós houve esperança,
Embora pensássemos que não.


Este tempo não é de paixões, não é de fogos.
Este tempo é de coisas que nos deformam .

* Foto de António Gregório

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

do corpo em espera.


o corpo não espera. não. por nós
ou pelo amor. este pousar de mãos,
tão reticente e que interroga a sós
a tépida secura acetinada,
a que palpita por adivinhada
em solitários movimentos vãos;
este pousar em que não estamos nós,
mas uma sede, uma memória, tudo
o que sabemos de tocar desnudo
o corpo que não espera; este pousar
que não conhece, nada vê, nem nada
ousa temer no seu temor agudo.*

*jorge de sena.
fotografia de joana linda.

da eternidade às costas.*



*ou quando o para sempre se torna pesado.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

O homem com dois poços no lugar dos olhos- I

Conheci-o tinha ele dois poços sem fundo no lugar dos olhos. Eram poços mesmo, nem um vislumbre de branco, pupilas, íris. Só dois pequenos globos pretos e opacos, debaixo dos cabelos prateados pelo uso do tempo. Teriam algum dia escondido inseguranças, acendido paixões, encancarado convites? Não precisei de mover os lábios para perguntar. Porque quando caí, leve, na outra ponta do banco, no meio do parque, ele ficou tão surpreendido que me falou.

- Nunca ninguém se aproxima de mim. E, no entanto, sentou-se. Não temeu a loucura.

Quis dizer-lhe que conheço bem essa deusa odiosa, privo com ela em todos os minutos, conheço-lhe o hálito e o modo de caminhar - olha, lá está ela a rondar. Só que o homem prosseguiu, sem voltar o rosto para mim, os dois sentados no banco verde escuro. (Podíamos ser musgo, ninguém dá por nós, de qualquer forma.) Explicou por que razão daqueles olhos não escorria cor.

O homem com dois poços no lugar dos olhos - II

- Nunca consegui chorar, eu nasci com olhos não humanos. Sempre que vi coisas tristes, sempre que senti a carne a rasgar, eles escureceram. Escureceram mesmo, percebe? Objectivamente. Depois ficaram tão poluídos que deixei tudo. Não suportei ver o velho sozinho sentar-se na paragem do autocarro e falar, procurando uma palavra alheia, que lhe prove que está vivo, ser olhado com pena e desdém, para voltar à casa antiga em lágrimas invisíveis. Não suportei ver o cão abandonado que tem moscas a devorar-lhe o sangue das orelhas corroídas pela negligência dos homens fugir do meu afago porque antecipa uma violência qualquer, ele que não sabe de mais nada a não ser violência. Não suportei ver a mulher nascida com a pele doente baixar a cabeça porque ouve sempre “coitadinha”, ou apenas risos, ou apenas o espanto. Eu não sei expulsar o desespero de assistir ao desfile interminável de auroras sem promessas.

O homem com dois poços no lugar dos olhos - III

Gostava de, nesta altura, ter podido dizer algo adequado. Mas permaneci imóvel e silencioso numa dor súbita. Depois fitei os dois poços perfeitamente encaixados na face branca e perguntei:

- Por que está aqui, no meio de toda esta gente? Crianças sem perspectiva de como a vida vai ser dura, jovens ainda cheios de metas e, mais forte do que isso, crentes de que vão alcançá-las! Pessoas saudáveis, com vidas aparentemente organizadas. Porquê?

Ele enrolou-se como um ouriço. Depois disse, com a voz sumida:

- As pessoas belas na aparência nunca reparam nos desiguais.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Foi tudo verdade



E então sinto o metal do rail perfurar-me o corpo mole, suave, tão suave como não poderia prever. Está uma noite diferente, há aroma a figos no ar. Sabes o que é isso? Faz-nos crer que tudo é pequeno, porque somos imensos, eternos, e a vida é simples. Decido deixar-me levar. Reconheço-te numa última imagem de ternura na cabeça finalmente apaziguada e deixo o rail entrar em mim. Afinal, foi tudo verdade. Foi tudo verdade.

sexta-feira, 13 de junho de 2008

Estamos num imenso quarto silencioso
Sem janelas.

quarta-feira, 23 de abril de 2008

Quiseram comer-lhe o coração - III

Numa noite de Verão, viajou até uma cidade estranha. Foi de comboio, porque já não tinha como segurar o volante do automóvel e engrenar as mudanças. Parou junto ao porto da cidade que não conhecia, mas, lera num livro, tinha mar. Sentou-se com as pernas a baloiçar sobre a água verde e comeu chocolate. Um rapaz sentou-se ao lado a ouvir música. Olhou-a de soslaio várias vezes. Quando ela se preparava para sair dali, para outro qualquer lugar onde não estivesse a ser observada, ele atirou-lhe: “És original”.

Ela sabia que não tinha orelha nem braço nem esperança, por isso deixou-lhe um olhar de desdém e ergueu-se, com pensamentos tristes.

“Não precisavas de ser cruel, rapaz das madeixas louras e do olhar opaco”.

Ele agarrou-lhe uma perna, delgada e branca, e impediu-a de partir. “Posso completar-te”, jurou-lhe. E, pela primeira vez, ela acreditou que podia mesmo ser feliz e gostar de viver, acordar sem pensar em como gostaria de dormir vida fora. Acreditou e partilhou tudo com ele: as paixões, os segredos, as dores e o corpo que lhe restava.

Foi numa noite perfumada que ela acordou, desconfortável. Ele estava sobre ela, por isso sorriu. Ele podia, ele devia. Sempre. Mas a respiração do rapaz dos olhos opacos, aí mais opacos que nunca, estava acelerada e irregular. Era a excitação. Com as duas mãos, ela pegou no rosto dele e percebeu que lhe bebia do peito aberto. Queria chegar até ao coração, soube ela, muito depois. Levantou-se num salto e triou-o do peito escancarado. Ele sorriu, sereno, mas com a respiração ainda desordenada. “És tão doce, não resisti”, afirmou o amante sonhado. Mas ela estava decidida:

“Quiseste comer-me o coração”.

Ele lambeu os lábios e pediu um pouco mais de prazer.

“Toma o sal dos olhos, da alma. Guarda o sangue doce, porque, agora, sou toda sal e silêncio”, respondeu ela.

Por fim, beijou-lhe a boca mortífera de homem amado e afagou-lhe os cabelos que quisera só para si.

Quiseram comer-lhe o coração - II

O tempo foi lento e desesperante até à tarde em que a velha com mãos luzidias lhe disse: entra. Mostrou-lhe a casa, os pequenos objectos tão pessoais, a cama onde adormecia a custo. Passaram a ser confidentes.

A velha abria-lhe a porta, contava-lhe das vidas que vivera, ensinava-a a não ser crédula, e ela pensava estar a aprender. Na mala levava sempre um bombom para dar à velha, que sempre declinava. “A diabetes impede-me”, justificava.
Até que, entre copos de chá, ela contou à velha um segredo:

“Um dia, gostava de viver junto ao mar, de ter um filho e um jardim com rosas.”

A velha pegou-lhe na mão para a aconchegar e, com um riso infantil, puxou o braço todo até ele se soltar e cair-lhe no avental. “Foram muitos dias a olhar para essa mão, enrolada nas minhas chávenas, na ânsia de conhecer o seu sabor. Sei que és a mais doce das pessoas, contaram-me. E sei também que, felizmente, és a mais ingénua”, explicou, perante as lágrimas ininterruptas dela. Então, findas as palavras, deu-se a expulsão. Ainda foi à janela, onde apareceu com o braço dela numa mão e uma faca aguçada na outra. “Os meus dentes já não me permitem grandes feitos”, atirou. E fechou a janela.

Sem orelha e sem braço, ela voltou ao rodopio dos dias e tentou não falar. As palavras conduziam à dependência.

Quiseram comer-lhe o coração - I

Acordava e devorava chocolate. Antes do banho, antes da roupa vestida, do café, da lenta sova de mais um dia. Devorava chocolate e pensava:

“Oxalá hoje seja melhor. A vida.”

Depois metia mais um pedaço à boca. Branco, negro, de leite. Em cubos ou noutras formas. Chocolate para vencer o mundo exterior.

E tornou-se, ela mesma, doce. Tanto, que alguém notou. Primeiro, um olhar de empatia, uma frase trocada perfeita. E os encontros múltiplos, as enormes expectativas.

“Um amigo.”

Não foi preciso muito tempo até este, quase por acaso, lhe ter sugado um dedo. Doce. “És doce, mas que fazes tu para saberes assim? Tanto açúcar nas veias, tantas promessas que hás-de cumprir(-me)”, dirigiu-lhe. Ela acreditou, sem pestanejar, e ofereceu-lhe um tesouro:

“Toma o cristal dos meus lábios. A transparência.”

Passaram a fazer juntos tudo aquilo que as pessoas fazem, de bom ou mau, de excitante ou banal. O cinema, os passeios na cidade, às vezes uns copos com líquidos transbordantes de enganos e cor. E foi o álcool que, misturado com trufas negras, permitiu o desabafo:

“Na verdade, nunca quis realmente viver.”

Ele correu-lhe as mãos etéreas pelos cabelos, parou na orelha esquerda e sussurrou: “Onde estiveste tu? Que bom foi conhecer-te”. Foi quando lhe arrancou a orelha com os dentes. A explicação única: “Um dia, vais entender que não podes ser assim, doce, doce, demasiado”. E partiu sem olhar para trás, de orelha na boca e olhar deliciado, deixando-a sozinha a chorar.

“Toma o sal dos olhos e da alma. Leva, também, a transparência!”, gritou, ainda, ao ex-amigo.

Mas ele não olhou para trás. Nunca mais.