domingo, 20 de setembro de 2009

Pele



Aposto que há pele tua debaixo da cama, nos livros acumulados, nas fotografias, nos meus olhos.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Carne exposta

O meu Amor repousa, estendido, na estrada. Tão mutilado que custa olhar. O pêlo brilha, ainda, por entre a carne exposta. Com o tempo, dizem-me, perderá a forma. Será cada vez mais uma mancha indefinida, algo que não se percebe o que foi, tão desfigurado surge. Mas eu saberei sempre - mesmo que o vento e a chuva e os homens o reduzam a algo invisível - que o meu amor está ali. Ainda que morto, esmagado, sem dignidade.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Sou um poço fundo onde flutua lixo inútil. São coisas bonitas: uma canção, um beijo, uma chávena de café, uma jarra de vidro colorido. Há, até, um coração.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Onde fui eu buscar tantas lágrimas? Existe espaço para tanto mar revolto e triste dentro de mim?

sexta-feira, 24 de julho de 2009

"And it wears me out, it wears me out
It wears me out, it wears me out.

And if I could be who you wanted
If I could be who you wanted,
All the time, all the time..."


(Radiohead, Fake Plastic Trees.)

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Especial


Todos lhe diziam que era especial. Ele sabia porquê: nascera com o coração fora do corpo, trancado numa caixa de vidro presa apenas por um cordão muito fino, cor de prata. No Inverno, acomodava o órgão, quente, no interior da sua invulgar protecção, no bolso do casaco. Chegava a esquecer-se dele. Por vezes, um gesto mais brusco atirava-o ao chão. Nunca sofreu mais do que uns arranhões – a caixa, não o coração. Esse pulsava lá dentro, era igual aos outros, tinha um ar muito vivo, forte. Com a chegada do calor, costumava segurá-lo na mão. Era nessas alturas que as pessoas lhe diziam: és especial.

Num dia especialmente quente, ele conheceu a Ilusão. Era bela, mas de uma beleza sem padrão. Se lhe perguntassem “o que vês nela?”, não saberia dizer. Não era isso o amor? A tortura dos sentidos enclausurados, a implorar liberdade sem freio? As semanas correram num delírio de emoções. Quando saíam juntos ele perdia-se no olhar perturbador dela e, não raras vezes, deixou a caixa com o coração – agora, sacudia-se com mais violência do que nunca – arrastar-se pelas ruas. Até ficar mais e mais debilitada. Aquelas pessoas que não lhe diziam “és especial” pediram-lhe cautelas. Em vão.

Num dia calmo de estacionamento dos corpos à beira do lago habitual, a Ilusão beijou-o e aproveitou o momento de rendição. Sem dificuldade, quebrou a caixa de vidro que protegia o coração (como podiam aqueles dedos tão esguios e aparentemente frágeis ter tanta força?) e, com as longas unhas, cortou-o em fatias bonitas, com a mesma espessura.

Ele demorou algum tempo a aperceber-se.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

A explosão

Fazer um corte, uma tatuagem, uma explosão, uma catástrofe. Matar. Para não morrer tanto.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

mármore.


- Hoje acordei com o lado direito do corpo apodrecido.

- Hoje acordei com o mar dentro dos olhos.

- O mar estava revolto ou apaziguado?

- Revolto. com ondas feitas de rostos passados.

- Tinham rugas ou conservavam o mármore mortífero?

- Tinham mapas de mundos destruídos, cravados na pele.

- Então a ruína sempre vem para todos.

- A ruína vem para aqueles que ergueram sonhos e estenderam caminhos. É injusto.

- Não. Todos caem.

- Mesmo os protegidos pela cegueira?

- Um dia o mundo vinga-se.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

a dança.


- Tesouros de sangue, guardo tesouros de sangue nas aves que partem com os meus olhos.

- Os céus cobrem as primaveras guardadas nos teus olhos. As aves, essas, pousam nos beirais dos corpos que se agitam na tempestade.


- As primaveras são de luz e sangue, é bom ter havido primaveras. E corpos despertos.

- Quantas vezes morre um corpo por não ter sentido a dança de histórias finitas?

- Demasiadas.


*imagem de chooupinette.

segunda-feira, 29 de junho de 2009

Violência

Somos aves de rapina.
Quando trocamos olhares
Sabemo-lo.

sexta-feira, 27 de março de 2009

Hoje


Hoje, a vida é triste como um animal ferido que queríamos ajudar, como um velho que perdeu a companheira da vida toda, como o frio dos dias de chuva que nos apanha de t-shirt apenas. Hoje, pesa-te a tua inutilidade. Perguntas: por que não podes, com a tua ânsia criadora, acertar as imperfeições do mundo?


(Olha, gato, não estás mais doente, acabou-se a dor no silêncio, acabaram-se os maus tratos e agora o teu mundo é longo e feliz, tens calor para adormeceres em paz. Tens festas.)


Nos sorrisos mais escondidos hei-de encontrar escape. Vou aninhar-me como numa camisola felpuda e esperar que me dêem atenção enquanto finjo dormir.

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009


"Passa no mundo a estranha ventania: é a morte que custa a separar da vida."


(Raul Brandão, in "Húmus")