quinta-feira, 20 de novembro de 2008

do corpo em espera.


o corpo não espera. não. por nós
ou pelo amor. este pousar de mãos,
tão reticente e que interroga a sós
a tépida secura acetinada,
a que palpita por adivinhada
em solitários movimentos vãos;
este pousar em que não estamos nós,
mas uma sede, uma memória, tudo
o que sabemos de tocar desnudo
o corpo que não espera; este pousar
que não conhece, nada vê, nem nada
ousa temer no seu temor agudo.*

*jorge de sena.
fotografia de joana linda.

da eternidade às costas.*



*ou quando o para sempre se torna pesado.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

O homem com dois poços no lugar dos olhos- I

Conheci-o tinha ele dois poços sem fundo no lugar dos olhos. Eram poços mesmo, nem um vislumbre de branco, pupilas, íris. Só dois pequenos globos pretos e opacos, debaixo dos cabelos prateados pelo uso do tempo. Teriam algum dia escondido inseguranças, acendido paixões, encancarado convites? Não precisei de mover os lábios para perguntar. Porque quando caí, leve, na outra ponta do banco, no meio do parque, ele ficou tão surpreendido que me falou.

- Nunca ninguém se aproxima de mim. E, no entanto, sentou-se. Não temeu a loucura.

Quis dizer-lhe que conheço bem essa deusa odiosa, privo com ela em todos os minutos, conheço-lhe o hálito e o modo de caminhar - olha, lá está ela a rondar. Só que o homem prosseguiu, sem voltar o rosto para mim, os dois sentados no banco verde escuro. (Podíamos ser musgo, ninguém dá por nós, de qualquer forma.) Explicou por que razão daqueles olhos não escorria cor.

O homem com dois poços no lugar dos olhos - II

- Nunca consegui chorar, eu nasci com olhos não humanos. Sempre que vi coisas tristes, sempre que senti a carne a rasgar, eles escureceram. Escureceram mesmo, percebe? Objectivamente. Depois ficaram tão poluídos que deixei tudo. Não suportei ver o velho sozinho sentar-se na paragem do autocarro e falar, procurando uma palavra alheia, que lhe prove que está vivo, ser olhado com pena e desdém, para voltar à casa antiga em lágrimas invisíveis. Não suportei ver o cão abandonado que tem moscas a devorar-lhe o sangue das orelhas corroídas pela negligência dos homens fugir do meu afago porque antecipa uma violência qualquer, ele que não sabe de mais nada a não ser violência. Não suportei ver a mulher nascida com a pele doente baixar a cabeça porque ouve sempre “coitadinha”, ou apenas risos, ou apenas o espanto. Eu não sei expulsar o desespero de assistir ao desfile interminável de auroras sem promessas.

O homem com dois poços no lugar dos olhos - III

Gostava de, nesta altura, ter podido dizer algo adequado. Mas permaneci imóvel e silencioso numa dor súbita. Depois fitei os dois poços perfeitamente encaixados na face branca e perguntei:

- Por que está aqui, no meio de toda esta gente? Crianças sem perspectiva de como a vida vai ser dura, jovens ainda cheios de metas e, mais forte do que isso, crentes de que vão alcançá-las! Pessoas saudáveis, com vidas aparentemente organizadas. Porquê?

Ele enrolou-se como um ouriço. Depois disse, com a voz sumida:

- As pessoas belas na aparência nunca reparam nos desiguais.