segunda-feira, 20 de julho de 2009

Especial


Todos lhe diziam que era especial. Ele sabia porquê: nascera com o coração fora do corpo, trancado numa caixa de vidro presa apenas por um cordão muito fino, cor de prata. No Inverno, acomodava o órgão, quente, no interior da sua invulgar protecção, no bolso do casaco. Chegava a esquecer-se dele. Por vezes, um gesto mais brusco atirava-o ao chão. Nunca sofreu mais do que uns arranhões – a caixa, não o coração. Esse pulsava lá dentro, era igual aos outros, tinha um ar muito vivo, forte. Com a chegada do calor, costumava segurá-lo na mão. Era nessas alturas que as pessoas lhe diziam: és especial.

Num dia especialmente quente, ele conheceu a Ilusão. Era bela, mas de uma beleza sem padrão. Se lhe perguntassem “o que vês nela?”, não saberia dizer. Não era isso o amor? A tortura dos sentidos enclausurados, a implorar liberdade sem freio? As semanas correram num delírio de emoções. Quando saíam juntos ele perdia-se no olhar perturbador dela e, não raras vezes, deixou a caixa com o coração – agora, sacudia-se com mais violência do que nunca – arrastar-se pelas ruas. Até ficar mais e mais debilitada. Aquelas pessoas que não lhe diziam “és especial” pediram-lhe cautelas. Em vão.

Num dia calmo de estacionamento dos corpos à beira do lago habitual, a Ilusão beijou-o e aproveitou o momento de rendição. Sem dificuldade, quebrou a caixa de vidro que protegia o coração (como podiam aqueles dedos tão esguios e aparentemente frágeis ter tanta força?) e, com as longas unhas, cortou-o em fatias bonitas, com a mesma espessura.

Ele demorou algum tempo a aperceber-se.

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