quarta-feira, 23 de abril de 2008

Quiseram comer-lhe o coração - I

Acordava e devorava chocolate. Antes do banho, antes da roupa vestida, do café, da lenta sova de mais um dia. Devorava chocolate e pensava:

“Oxalá hoje seja melhor. A vida.”

Depois metia mais um pedaço à boca. Branco, negro, de leite. Em cubos ou noutras formas. Chocolate para vencer o mundo exterior.

E tornou-se, ela mesma, doce. Tanto, que alguém notou. Primeiro, um olhar de empatia, uma frase trocada perfeita. E os encontros múltiplos, as enormes expectativas.

“Um amigo.”

Não foi preciso muito tempo até este, quase por acaso, lhe ter sugado um dedo. Doce. “És doce, mas que fazes tu para saberes assim? Tanto açúcar nas veias, tantas promessas que hás-de cumprir(-me)”, dirigiu-lhe. Ela acreditou, sem pestanejar, e ofereceu-lhe um tesouro:

“Toma o cristal dos meus lábios. A transparência.”

Passaram a fazer juntos tudo aquilo que as pessoas fazem, de bom ou mau, de excitante ou banal. O cinema, os passeios na cidade, às vezes uns copos com líquidos transbordantes de enganos e cor. E foi o álcool que, misturado com trufas negras, permitiu o desabafo:

“Na verdade, nunca quis realmente viver.”

Ele correu-lhe as mãos etéreas pelos cabelos, parou na orelha esquerda e sussurrou: “Onde estiveste tu? Que bom foi conhecer-te”. Foi quando lhe arrancou a orelha com os dentes. A explicação única: “Um dia, vais entender que não podes ser assim, doce, doce, demasiado”. E partiu sem olhar para trás, de orelha na boca e olhar deliciado, deixando-a sozinha a chorar.

“Toma o sal dos olhos e da alma. Leva, também, a transparência!”, gritou, ainda, ao ex-amigo.

Mas ele não olhou para trás. Nunca mais.

Sem comentários: