quarta-feira, 23 de abril de 2008

Quiseram comer-lhe o coração - II

O tempo foi lento e desesperante até à tarde em que a velha com mãos luzidias lhe disse: entra. Mostrou-lhe a casa, os pequenos objectos tão pessoais, a cama onde adormecia a custo. Passaram a ser confidentes.

A velha abria-lhe a porta, contava-lhe das vidas que vivera, ensinava-a a não ser crédula, e ela pensava estar a aprender. Na mala levava sempre um bombom para dar à velha, que sempre declinava. “A diabetes impede-me”, justificava.
Até que, entre copos de chá, ela contou à velha um segredo:

“Um dia, gostava de viver junto ao mar, de ter um filho e um jardim com rosas.”

A velha pegou-lhe na mão para a aconchegar e, com um riso infantil, puxou o braço todo até ele se soltar e cair-lhe no avental. “Foram muitos dias a olhar para essa mão, enrolada nas minhas chávenas, na ânsia de conhecer o seu sabor. Sei que és a mais doce das pessoas, contaram-me. E sei também que, felizmente, és a mais ingénua”, explicou, perante as lágrimas ininterruptas dela. Então, findas as palavras, deu-se a expulsão. Ainda foi à janela, onde apareceu com o braço dela numa mão e uma faca aguçada na outra. “Os meus dentes já não me permitem grandes feitos”, atirou. E fechou a janela.

Sem orelha e sem braço, ela voltou ao rodopio dos dias e tentou não falar. As palavras conduziam à dependência.

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