quarta-feira, 23 de abril de 2008

Quiseram comer-lhe o coração - III

Numa noite de Verão, viajou até uma cidade estranha. Foi de comboio, porque já não tinha como segurar o volante do automóvel e engrenar as mudanças. Parou junto ao porto da cidade que não conhecia, mas, lera num livro, tinha mar. Sentou-se com as pernas a baloiçar sobre a água verde e comeu chocolate. Um rapaz sentou-se ao lado a ouvir música. Olhou-a de soslaio várias vezes. Quando ela se preparava para sair dali, para outro qualquer lugar onde não estivesse a ser observada, ele atirou-lhe: “És original”.

Ela sabia que não tinha orelha nem braço nem esperança, por isso deixou-lhe um olhar de desdém e ergueu-se, com pensamentos tristes.

“Não precisavas de ser cruel, rapaz das madeixas louras e do olhar opaco”.

Ele agarrou-lhe uma perna, delgada e branca, e impediu-a de partir. “Posso completar-te”, jurou-lhe. E, pela primeira vez, ela acreditou que podia mesmo ser feliz e gostar de viver, acordar sem pensar em como gostaria de dormir vida fora. Acreditou e partilhou tudo com ele: as paixões, os segredos, as dores e o corpo que lhe restava.

Foi numa noite perfumada que ela acordou, desconfortável. Ele estava sobre ela, por isso sorriu. Ele podia, ele devia. Sempre. Mas a respiração do rapaz dos olhos opacos, aí mais opacos que nunca, estava acelerada e irregular. Era a excitação. Com as duas mãos, ela pegou no rosto dele e percebeu que lhe bebia do peito aberto. Queria chegar até ao coração, soube ela, muito depois. Levantou-se num salto e triou-o do peito escancarado. Ele sorriu, sereno, mas com a respiração ainda desordenada. “És tão doce, não resisti”, afirmou o amante sonhado. Mas ela estava decidida:

“Quiseste comer-me o coração”.

Ele lambeu os lábios e pediu um pouco mais de prazer.

“Toma o sal dos olhos, da alma. Guarda o sangue doce, porque, agora, sou toda sal e silêncio”, respondeu ela.

Por fim, beijou-lhe a boca mortífera de homem amado e afagou-lhe os cabelos que quisera só para si.

1 comentário:

Nani disse...

gostei mesmo muito.

ser doce, ser ingénuo traz-nos muitas experiências agridoces na vida.

mas também faz com que aceitemos tudo de uma forma plena. sem que soframos de antemão. vivemos sem medos, aproveitando tudo ao máximo.

posta mais!

beijinho*