quarta-feira, 5 de novembro de 2008

O homem com dois poços no lugar dos olhos - II

- Nunca consegui chorar, eu nasci com olhos não humanos. Sempre que vi coisas tristes, sempre que senti a carne a rasgar, eles escureceram. Escureceram mesmo, percebe? Objectivamente. Depois ficaram tão poluídos que deixei tudo. Não suportei ver o velho sozinho sentar-se na paragem do autocarro e falar, procurando uma palavra alheia, que lhe prove que está vivo, ser olhado com pena e desdém, para voltar à casa antiga em lágrimas invisíveis. Não suportei ver o cão abandonado que tem moscas a devorar-lhe o sangue das orelhas corroídas pela negligência dos homens fugir do meu afago porque antecipa uma violência qualquer, ele que não sabe de mais nada a não ser violência. Não suportei ver a mulher nascida com a pele doente baixar a cabeça porque ouve sempre “coitadinha”, ou apenas risos, ou apenas o espanto. Eu não sei expulsar o desespero de assistir ao desfile interminável de auroras sem promessas.

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